sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

"O que me incomoda é um modus vivendi doentio"

Da série DIÁLOGOS POSSÍVEIS

por Débora Medeiros

Num café da cidade, David Duarte fala de uma certa “apatia musical cearense” que, segundo ele, está relacionada ao forró com letras violentas, cheias de preconceito contra a mulher e ligadas ao alcoolismo. A entrevista não poderia terminar sem café e pães-de-queijo.

VALEU depois do sucesso do disco Essencial e da música Valeu a Pena Esperar, David diz que vai demorar para produzir outro trabalho

Você consegue imaginar o cantor David Duarte, presença garantida na programação de rádios como Tempo ou Calypso, caçando músicas de forró pelas FMs 93 da vida? David garante que nem ele imaginava que um dia faria algo assim. Em agosto deste ano, ele chamou os amigos, selecionou um repertório de canções suas e de outros compositores nordestinos e botou a filha Diana em cima de um par de pernas-de-pau, tudo para um show que tinha agendado na Taíba. Já no palco, se surpreendeu com a apatia geral das cerca de 10.000 pessoas presentes, o que o obrigou, inclusive, a reduzir o repertório planejado. Uma parte da platéia começou a pedir que ele fosse substituído por uma banda de forró. “Três gatos pingados, de cachaça e chapéu, começaram a gritar: ‘Forró! Forró!’ Aí eu ouvi e falei: ‘Como é que é? Vamo lá! Forró! Forró!’, bem irônico. Criou-se um certo burburinho, começaram a falar, depois sentiram que tava ficando estranho e pararam. Aí eu disse assim: ‘Vocês lá querem forró! Se vocês quisessem forró, vocês agora estavam gritando. Isso aqui é forró, minha gente! E comecei a cantar ‘Vaca Estrela e Boi Fubá’,’’ conta. A perplexidade com o episódio levou-o a observar a maneira como o chamado forró elétrico tem alterado os hábitos da sociedade cearense. “É que parece que as pessoas, no inconsciente coletivo, estão se conformando, estão fazendo aquela corrente, aquela grande corrente, e dizendo assim: ‘Graças a Deus, eu não preciso saber, eu não preciso pensar, eu não preciso nem sequer agir. Eu só preciso ir com a maré!’,” indigna-se. Ele tem planos de montar um novo show só com essa temática, para alertar o público, e já imagina até a cenografia do espetáculo.

Jornal Jabá – Essa intenção de criar um movimento, de fazer com que as pessoas reflitam sobre isso, já é de muito tempo ou veio a partir do show da Taíba?

David Duarte – O show da Taíba foi o grande estopim. Porque eu sempre quis encontrar uma maneira de averiguar isso como uma coisa, um fenômeno natural, social. Mas não é! O show da Taíba foi o estopim porque eu pude perceber. Olha, eu tive o show da Bienal de Aracati no ano passado, que foi um show lindo também, com um puta dum som que veio não sei de onde, foi um show maravilhoso. Acontece que, numa cidade do interior, numa praça pública, quando se monta, hoje em dia, principalmente aqui no Ceará, um palco com uma grande estrutura de show, as pessoas ficam assim (fica encurvado, de braços cruzados, imitando a expressão de apatia do público), esperando o forró começar. Se não começar forró, as pessoas vão se evadindo. Então, foi por causa de uma seqüência de dificuldades que eu tive em relação ao fato de me apresentar em praças públicas, em cidades do interior. Em Fortaleza também, mas, em Fortaleza, eu tenho o meu público, já é diferente. A massa do meu público contrapõe um pouco essa história. Mas ainda é uma apatia total!

JJ – Uma coisa que parece lhe incomodar bastante são as letras, não é tanto a música, a melodia do forró. Por quê?

David – Eu nem conheço essas letras, sabe? Eu nem conheço. Na verdade, o que me incomoda é o fato de haver, em torno dessa indústria, uma proliferação, uma propagação de um modus vivendi que é completamente doentio, que tá relacionado com a violência, que tá relacionado com o alcoolismo, com o consumo de álcool por menores. Eu identifico três estágios: o momento em que a pessoa está aflita porque ainda não bebeu, o momento em que ela está eufórica porque já bebeu e o momento em que ela está deprimida porque tem que parar de beber, porque tá de ressaca. Então, essas pessoas, no trato social, elas vivem em torno [disso]. Porque eu conheço a doença do alcoolismo. Eu posso dizer que eu conheço, porque eu já vivi um trabalho relacionado com isso na minha própria vida. E isso também não vem ao caso. Mas eu conheço o mecanismo dessa doença. E não tem outra, são esses três estágios. Então, o que é uma segunda-feira nas repartições? Você vai comprar uma coisa numa loja, a mulher tá assim, o cara tá assim (escora a cabeça nas mãos, reproduzindo a expressão de cansaço das pessoas). Em contraponto a isso, tem o grande advento do culto evangélico e suas várias ramificações, que lidam com isso com o simplismo de dizer que é só coisa do diabo, do Satanás. É uma visão um tanto quanto simplista pra mim, em função do fato de eu conhecer um pouco os meandros, as entrelinhas dessa doença. Então, eu percebo que é um problema de saúde pública, que está tendo o aval de pessoas que ainda dizem: “O negócio é cachaça, rapariga e forró.” Quer dizer, que tipo de mentalidade, o que a pessoa quer ouvir quando quer fazer isso [consumir bebidas alcoólicas]?

JJ – Além dessa questão do alcoolismo, de que outras formas você acha que o forró influencia o comportamento das pessoas?

David – Na co-depedência. Nessa questão de achar que o relacionamento é um relacionamento que tá, digamos assim, postado em cima de – eu não diria de aparências, não é isso. Eu acho que colocando a volúpia no lugar errado, na hora errada. Quando você não tem a chave pra abrir um negócio e você precisa muito entrar, você arromba. Eu acho que é isso que eles tão fazendo, tão arrombando o processo, sabe? Não é bem por aí. Acontece que é o seguinte: as pessoas já têm uma preguiça de pensar. As pessoas já comem mal, dormem mal, vivem mal, são muito prejudicadas pelo desfavorecimento social, de classe. Vixe, até parece que eu sou um sociólogo, né? Eu tô falando isso porque só pode ser mesmo complexo. Então, junta tudo isso e nós temos aí um coeficiente de infelicidade. Essa infelicidade gera uma dor, essa dor gera um sofrimento. Não precisaria, mas gera um sofrimento, por causa do despreparo das pessoas. Isso a grosso modo. O sofrimento precisa ser anestesiado, e essa anestesia precisa ser institucionalizada. É isso que eles estão fazendo: institucionalizando o sofrimento das pessoas. É como eu disse: “aquela cachaça, e a dor não passa, a dor não passa... depois das dez mulheres de graça, de graça, de graça...” (citando uma de suas composições sobre o tema, “Balada da Apatia Popular”). Tá entendendo? E, no fundo disso – e isso é que é o mais bonito do ser humano –, é que a alma, enquanto a criatura tá viva, a alma não deixa de pulsar. Então, lá no fundo, existe um confronto disso tudo com a alma. Mesmo que seja de uma forma bem simplista mesmo: a alma que ele aprendeu a dizer que é alma quando vai pra igreja ou os pais contaram pra ele. Então tem um conflitozinho lá dentro que torna a pessoa mais violenta ainda: “Pois eu vou é fazer, pois eu vou é matar, pois eu vou é bater!”

JJ – E essas pessoas que ouvem essas músicas, vão pra esses lugares...

David – O problema não tá nas músicas. Eles se prevaleceram disso e agora a música está se prevalecendo e vice-versa. Olha, eu queria muito que vocês percebessem que eu não tenho problema nenhum com o forró. O meu problema é com as pessoas, eu tô preocupado com as pessoas.

JJ – As pessoas que escutam forró?

David – Rapaz, as pessoas geralmente, coincidentemente... Eu percebi isso: que esse tsunami tá levando todo mundo, aonde você chega. E tem esse aspecto do dia, porque não é só à noite, é como eu falei: ou a pessoa tá ansiosa porque não está bêbada ou ela está eufórica porque está bêbada ou tá deprimida porque tá cansada. E esse processo, meus queridos, dura três dias, dois dias...

JJ – Essas pessoas são felizes?

David – Felizes? Rapaz, elas são alegres, disso eu sei. Mas felizes... Provavelmente, eu venha um dia a ter certeza que não, não são felizes. A felicidade é uma coisa meio sem graça, sabe? Porque a felicidade precisa de muita aceitação. A felicidade não é você mudar nada, não. A felicidade é você estar bem com o que for que esteja acontecendo. Isso é felicidade. Um conceito meio parecido com o de utopia, né? É uma coisa meio sem graça, as pessoas não querem viver essa felicidade sem graça.

JJ – A gente verifica às vezes que músicos com formação erudita vão trabalhar em bandas de forró por causa do salário, que é maior.

David – Nossa, que informação, hein? Você tem essa informação? Porque, justamente, a informação que eu tenho, a informação que eu tinha no início, era que músicos de pouca formação, de pouca qualidade, vão pras bandas. Veja, existem dois universos: o universo do estúdio e o universo dos shows. Realmente, nos estúdios, as bandas de forró lançam mão dos melhores músicos da cidade, fora os músicos que já acompanham as bandas. Mas, quando é nos shows, aí, geralmente, partem praqueles músicos menos formados, que são os músicos das bandas marciais, banda de Pia Martha, banda da Marinha... Têm muitos desses músicos que tocam metais em banda de forró.

JJ – Tem um projeto no Rio Grande do Norte [Banda Municipal de Cruzeta], que trabalha com formação de jovens em música erudita. Muitos, quando terminam o projeto, vão procurar emprego e acabam encontrando só nas bandas de forró.

David – Só tem banda de forró!

JJ – Por que você acha que o mercado é tão difícil pra outros gêneros musicais, pros músicos conseguirem viver de música?

David – Por causa da mídia. Não existe espaço pra que as pessoas se acostumem a gostar de outra coisa.

JJ – Você acha que isso pode mudar?

David – Eu acho que pode. Ah, essa pergunta é muito interessante. Daqui a vinte anos, como é que não vai tá isso tudo? Será que não vai ter outra coisa? Agora, uma coisa eu sei: do jeito que está, nós estamos caminhando pra formar, produzir, parir pessoas completamente disfuncionais. Pelo menos, aqui no nosso estado. Tem um monte de problemas incrustados nessa questãozinha aí. É um sentimento de raiva, de inadequação, de diminuição, de desfavorecimento social. “Eu sou desfavorecido, pois agora eu vou assumir, porque a única coisa que faz com que eu seja grande, enquanto fodido, é ter!” Cachaça é um negócio barato, é uma droga baratíssima. Cachaça é mais barato do que cigarro, cara! Eu sou tabagista. É a única droga que eu uso.

JJ – Você planeja parar?

David – Planejo. Sabe que ontem mesmo eu planejei? (risos) O importante, na verdade, é a reflexão, porque, com a reflexão, vem o desejo de parar ou de começar alguma coisa. Parado é que neguinho não faz nada. Parado, neguinho só vai sendo levado.

4 comentários:

bruno reis disse...

bem interessante essa entrevista, débora. o david duarte se mostra bastante lúcido, e parece ser alguém que tenta fazer alguma coisa pra reinventar a mesmice. eu só me preocupo às vezes da gente não estar olhando as coisas muito de fora, e por isso superficialmente. não acho que tenha sido o caso, muito pelo contrário, acho que ele aponta várias coisas que são realmente muito verdadeiras, mas ainda assim acho que a gente precisa ter um pouco mais de atenção para a questão antes de dizer: é isso!

as pessoas precisam consumir besteira, de alguma forma de escapismo, sem que necessariamente estejam numa vida totalmente sem sentido. eu preciso, você precisa, o pequeno burguês, o grande e o favela do mesmo jeito. eu queria acreditar que a arte pode mudar as coisas, e até certo ponto pode. se ela não move o problema, pelo menos, como aquela lei da física, faz com que os corpos fiquem em iminência do movimento. o resto fica com a gente. precisa de dizer que a educação era um passo e tanto pra resolver essas e quase todas as outras coisas? educação artística, inclusive, que até hoje é confundida com recreação e artesanato. as pessoas tem que estar minimamente preparadas para fruir a arte e ter algum senso crítico, mesmo que seja para escolher aquilo do qual vão tomar sua dose escapismo.

Débora Medeiros disse...

Só pra acrescentar os créditos completos: a entrevista foi feita por mim, pelo Alan Santiago e pela Roberta Felix. A foto é do Alan :)

Comentário legal, lôro! Concordo que, como em qualquer outra esfera de nossa vida, é preciso dar as ferramentas intelectuais pra fundamentar as escolhas na arte também. Claro que nada deve ser banido, tudo é válido, mas é preciso conhecer para poder escolher. Quase nunca é o que acontece. Mesmo com a pirataria, muita gente não tem acesso ao trabalho de bons artistas. Até porque os camelôs estão inundados de CDs de forró.

bruno reis disse...

ai, débs, cê acabou sendo preconceituosa no final. digamos que os camelôs estão, infelizmente, inundados SOMENTE com cds de forró. toda unimidade é péssima e fora de moda =p

Débora Medeiros disse...

Hihihi, erro meu, lôro!